Por Gabriel Somma Quaresma de Oliveira e Leonel Silva Bertino Algebaile
A Constituição adotou a federação como forma de Estado, o que significa dizer que cada um dos entes — União, estados, Distrito Federal e municípios — gozam de autonomia administrativa e fiscal, inteligência extraída do artigo 1º, combinado com o artigo 18, ambos da CRFB/1988.
Como consequência lógico-sistemática da autonomia fiscal, a Carta Magna de 88 atribuiu a cada um dos entes políticos federativos a prerrogativa de instituir os tributos, o que recebe a definição de competência tributária.
Dentre os inúmeros impostos nominados pela nossa Constituição, o ICMS (imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação) é de competência tributária dos Estados e do Distrito Federal, nos termos do artigo 155, II, da CRFB/1988.
Todavia, com o objetivo de corrigir desequilíbrios verticais e horizontais em matéria tributária, que acabam desencadeando descompassos entre a capacidade de tributar (e consequentemente obter receitas) e as responsabilidades atribuídas a cada ente federado de prover as necessidades públicas (contraindo elevadas despesas), ainda no nível constitucional foi devidamente prevista a denominada repartição das receitas tributárias.
Nessa toada, o artigo 158, II, da CRFB/1988, definiu que 25% do produto da arrecadação deste imposto estadual (ICMS) pertencem aos municípios.
Esses 25% do produto da arrecadação do ICMS que cabem aos Municípios serão distribuídos nos moldes do artigo 158, parágrafo único, da CRFB/1988: 1) no mínimo 65% devem ser creditados na proporção do valor adicionado das operações relativas à circulação de mercadorias e das prestações de serviços (de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação), realizadas em seus territórios; e 2) até 35%, de acordo com o que dispuser lei estadual ou, no caso dos territórios, lei federal. Leia-se o texto do artigo 158, da CRFB/1988, com redação conferida pela EC nº 108/2020.
Em relação à segunda parcela, referida no artigo 158, parágrafo único, inciso II, da CF, a qual deve ser distribuída entre os Municípios de acordo com o disposto em lei estadual, o Pretório Excelso reconhece que não há necessidade de observância dos critérios estabelecidos em lei complementar federal [1], não se imiscuindo este artigo sobre ela.
Quanto à cota-parte que versa o artigo 158, parágrafo único, inciso I, da CRFB/1988, a repartição das receitas se fará na proporção do valor adicionado nas operações relativas à circulação de mercadorias.
Com efeito, o artigo 161, I, da CRFB/1988, previu que caberia à Lei Complementar definir e conceituar “valor adicionado”, para os fins da repartição de receitas do produto da arrecadação do ICMS prevista no artigo 158, Parágrafo Único, inciso I, da Constituição.
Com essa finalidade, foi editada a Lei Complementar nº 063/1990, que dispõe sobre os critérios para o crédito de, hoje, 65% (sessenta e cinco por cento), no mínimo, do produto da arrecadação do ICMS que cabe aos municípios.
Como se vê, a norma constitucional e a legislação federal desenharam que 25% do produto da arrecadação do ICMS cabe aos municípios, dos quais 65%, no mínimo, são repartidos na proporção do valor adicionado.
Nesse contexto, é de crucial importância para os 5.568 municípios do Brasil que se debruce sobre o tema para entender o que é “valor adicionado”.
É sabido que, como disposto na Lei Complementar nº 63/90, valor adicionado não se confunde com valor agregado ou beneficiamento de produto. Valor adicionado já foi brilhantemente definido no REsp nº 35.667-9/SP: “O valor adicionado é o resultado de singela operação aritmética de saídas menos entradas em cada estabelecimento contribuinte, decorrente de operações tributáveis, não está relacionado como o montante do ICM arrecadado no respectivo território”.
Da mesma forma, vê-se na decisão do Recurso Especial nº 6.161/SP, no qual seu relator, ministro Garcia Vieira, fez repetir, com precisa conceituação a questão, deixando claro tratar que não é o valor adicionado de natureza tributária, mas sim um conceito econômico de natureza financeira, prestando tão somente a compor um índice de melhor distribuição de riqueza na partição das receitas de ICMS aos municípios, em que havida a circulação de riquezas. Veja-se, in verbis, parte da decisão em comento (anexa):
“(…). Pelo que se expõe o conceito de valor adicionado não é tributário, mas, sim, financeiro, voltado à avaliação da riqueza (e não da arrecadação) gerada nos territórios de cada município pela atividade produtiva de cada estabelecimento inscrito no Cadastro de Contribuintes do ICM, ainda que o estabelecimento, em virtude da peculiaridade de suas operações, não tenha recolhido qualquer ceitil a título de imposto, como por exemplo aquele cuja produção industrial seja exclusivamente destinada ao exterior, de regra franqueada com anão incidência, ou aquele que goze de isenção subjetiva (…).”
Reforçando esse entendimento sobre “valor adicionado”, destaca-se o conceito trazido no brilhante voto do ministro relator, Peçanha Martins, no Recurso Especial nº 331.845/MG, onde ressalva como correta a observação do Ilustre Desembargador Orlando Carvalho, quando no voto condutor do acórdão em apreciação deixou consignado:
“(…) Ora, flagrante é a ilegalidade da referida Resolução nº 2945/98 da Secretaria de Estado da Fazenda de Minas Gerais, por contrariar Lei Complementar e Decreto Estadual nº 38.714/97, resultando na redução drástica da cota de participação do Município impetrante, em 93%, inviabilizando sua administração.
Atente-se a que o VAF não é tributo, não se confunde com o ICMS, mas é uma forma de redistribuição e rendas, não se podendo confundir base de cálculo de tributo com valor referência para cálculo do VAF.
Calcular ICMS não é a mesma coisa que calcular o VAF.
Assim, o valor da mercadoria, especificado na Nota Fiscal de transferência é que deve servir de referência para o VAF, nos termos do artigo 3º, §1º da Lei Complementar 63/90, até que outra lei idêntica o modifique ou revogue. (fls. 158/160).”
Dessa forma, segundo a jurisprudência pátria, “valor adicionado” é critério econômico de natureza financeira, prestando tão somente a compor um índice de melhor distribuição de riqueza na partição das receitas de ICMS aos municípios. E a Lei Complementar nº 063/1990 esclarece que valor adicionado “corresponderá, para cada Município: (…) o valor das mercadorias saídas, acrescido do valor das prestações de serviços, no seu território, deduzido o valor das mercadorias entradas, em cada ano civil”. (artigo 3º, §1º, inciso I).
Porém, não é só isso!
O exegeta deve selecionar quais operações, de entrada e saída de mercadoria, devem ser consideradas na apuração e cálculo do valor adicionado.
Para tanto, o §2º, do artigo 3º, da LC nº 63/90, deixa claro que há valor adicionado quando ocorre fato gerador do ICMS (ou quando ele poderia ocorrer, nas hipóteses de imunidade), concernente na circulação jurídica da mercadoria.
O fato, pois, de uma operação relativa à circulação de mercadoria ou de prestação de serviço de transporte intermunicipal ou de comunicação que, em princípio, por sua natureza, é tributável, ter o crédito tributário obstado por força de norma constitucional ou infraconstitucional, não altera em nada o valor adicionado.
Valor adicionado, assim, é elemento financeiro a ser considerado na repartição da cota-parte do ICMS que cabe aos municípios, não se correlacionando com o imposto arrecadado, mas sua apuração depende da existência de fato gerador do ICMS (ou quando ele poderia ocorrer e não ocorreu por força de imunidade).
Ora, existe valor adicionado ainda que não tenha havido qualquer beneficiamento do produto ou agregação de valor. Há valor adicionado quando ocorre fato gerador do ICMS, concernente na circulação jurídica da mercadoria, ou seja, quando o produto muda de titularidade, efetiva-se valor adicionado no local onde se dá o fato gerador do ICMS.
O ICMS é um tributo imbricado ao consumo, sendo certo que o estabelecimento do contribuinte onde se dá a transferência de propriedade do bem comercializado (elemento espacial) é o local onde ocorre o fato gerador e deve ser destinado o valor adicionado.
O artigo 11, inciso I, alínea “a”, e §3º, e artigo 12, I, ambos da Lei Complementar 087/1996, expressamente consideram como ocorrido o fato gerador do ICMS no local da operação, assim entendido o do estabelecimento do contribuinte onde se encontrar a mercadoria quando da saída para transferência de titularidade (aspecto material, temporal e espacial do fato gerador).
O Tribunal da Cidadania entende de forma reiterada que o valor adicionado deve ser atribuído unicamente ao local onde ocorre o fato gerador do ICMS, ou seja, cabe valor adicionado ao Município onde há a mudança de titularidade da mercadoria, sendo desimportante a agregação de valor ou beneficiamento do produto para fins de valor adicionado e surgimento do fato gerador de ICMS.
Assim já disse o STJ: “Conforme posição doutrinária e jurisprudencial uniforme, o consumo é o elemento temporal da obrigação tributária do ICMS incidente sobre energia elétrica, sendo o aspecto espacial, por dedução lógica, o local onde consumida a energia”. (Embargos de Divergência em REsp nº 811.712/SP, relator ministro Castro Meira).
Em igual sentido: AgRg no REsp nº 1.191.693/MS, relator ministro Humberto Martins, relator para acórdão Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 19/2/2013, DJe de 19/4/2013; e AgInt no RMS nº 60.451/MG, relator ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 20/8/2019, DJe de 27/8/2019.
Destarte, a legislação federal de regência torna inequívoco que o “valor adicionado” ocorre quando há fato gerador de ICMS, devendo este ser atribuído ao Município onde está situado o estabelecimento do contribuinte através do qual a mercadoria ganhou circulação jurídica.
Enfim, o conhecimento da matéria revela-se de inegável importância aos municípios brasileiros, pois desta derivam significativos recursos públicos para os entes municipais, especialmente porque o ICMS é um dos tributos cuja arrecadação é mais expressiva [2], sendo os Municípios titulares de 25% dessa substancial arrecadação, cujos valores estão na ordem dos bilhões e bilhões de reais por ano [3].
[1] RE nº 379.013 ED, relator ministro Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, julgado em 29/11/2011. Aqui.
[2] Aqui . Acesso em 11/10/2022, às 13h05.
Gabriel Somma Quaresma de Oliveira é advogado, procurador municipal, professor da Emerj (Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro), mestrando em Direito pela Unesa (Universidade Estácio de Sá), especialista em Direito Público e Privado pela Emerj, especialista em Direito Administrativo pela Ucam (Universidade Cândido Mendes), membro do Cejur (Centro de Estudos Jurídicos da PGM Japeri-RJ) e presidente da Comissão Especial de Direito do Estado e Advocacia Pública da 1ª Subseção da OAB-RJ.
Leonel Silva Bertino Algebaile é advogado, procurador municipal, mestrando em Direito pela Unesa (Universidade Estácio de Sá), especialista em Direito Público pela UCP (Universidade Católica de Petrópolis), presidente do Cejur (Centro de Estudos Jurídicos da PGM Japeri-RJ) e membro da Comissão Especial de Direito do Estado e Advocacia Pública da 1ª Subseção da OAB-RJ.
Fonte:
https://www.conjur.com.br/2022-out-31/algebailee-oliveira-cota-parte-produto-arrecadacao-icms