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Prescrição decretada de ofício e contraditório: um IRDR no TJ-RJ

Por Gabriel Somma Quaresma de Oliveira e Leonel Silva Bertino Algebaile

Este artigo tem o objetivo de analisar caso decidido recentemente, em sede de incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ), no qual foi fixada tese que confirma ser indispensável a prévia intimação da exequente para decretação de ofício de prescrição intercorrente em execução fiscal.

O Código de Processo Civil de 2015 trouxe o instituto do IRDR, previsto nos artigos 976 a 987, como mecanismo para pacificar questões de Direito controvertidas no âmbito dos tribunais e trazer segurança jurídica e isonomia para os jurisdicionados.

Eis a redação, bastante clara:

“Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente:
I – efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito;
II – risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.”

Como bem pontuou a eminente ministra Assussete Magalhães, do Superior Tribunal de Justiça, “o IRDR é um relevante instrumento concebido pelo CPC/2015 que visa a atender à racionalização do trabalho e aos princípios da celeridade processual, da isonomia e da segurança jurídica na entrega da prestação jurisdicional” [1].

No dia 6/10/2022, a Seção Cível do TJ-RJ, por unanimidade de votos, acolheu Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e fixou tese favorável à Fazenda Pública municipal, determinando-se a restituição da causa piloto, a Apelação Cível nº 0014243-45.2007.8.19.0083, à Câmara de origem para aplicação da tese firmada.

A mencionada causa piloto, aquela entendida como o caso paradigma afetado em IRDR para guiar a solução da questão controvertida no Tribunal, teve origem no município de Japeri (RJ), tendo sido o incidente instaurado por iniciativa da 21ª Câmara Cível do TJ-RJ, que assim decidiu em questão de ordem:

“QUESTÃO DE ORDEM SUBMETIDA AO COLEGIADO. APELAÇÃO CÍVEL. TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. IPTU. PRESCRIÇÃO. DECLARAÇÃO DE OFÍCIO. AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO DA FAZENDA PÚBLICA. ART. 487, PARÁGRAFO ÚNICO DO CPC. CONTROVÉRSIA SOBRE QUESTÃO UNICAMENTE DE DIREITO E DE NOTÓRIA RECORRÊNCIA NESTA CORTE, CUJA CISÃO DE POSCIONAMENTOS REVERBERA ATÉ MESMO NESTE ÓRGÃO JULGADOROFENSA À SEGURANÇA JURÍDICA E À ISONOMIA. REQUISITOS PRESENTES PARA A INSTAURAÇÃO DE IRDR. ENCAMINHAMENTO DO PROCESSO À SEÇÃO CÍVEL. SUSPENSÃO DO JULGAMENTO DA APELAÇÃO ATÉ APRECIAÇÃO DO INCIDENTE.” (TJERJ. Apelação Cível nº 0014243-45.2007.8.19.0083. Relator: desembargador ANDRÉ RIBEIRO. 21ª Câmara Cível. Publicado em 29/11/2019).” (Grifamos)

No cenário apresentado, as decisões colacionadas aos autos demonstravam uma controvérsia, no âmbito da corte fluminense, acerca da exata aplicação do artigo 487, p.ú., do CPC, com semelhante previsão nos §4º do artigo 40 da Lei 6.830/80 e artigo 10 do CPC:

“CPC: Art. 487. […] Parágrafo único. Ressalvada a hipótese do § 1o do art. 332, a prescrição e a decadência não serão reconhecidas sem que antes seja dada às partes oportunidade de manifestar-se.”
“CPC: Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestarainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.”
“Lei 6.830/80: Art. 40. […] §4º. Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato.”

Poder-se-iam enumerar dezenas de decisões que demonstram a controvérsia, mas, diante do objetivo do presente artigo, seguem abaixo apenas duas, que constaram no voto do eminente relator ao suscitar a instauração do IRDR:

“Apelação Cível. Execução Fiscal. Município de Japeri. Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU. Crédito tributário relativo aos exercícios de 2003 a 2006. Extinção do processo, pelo reconhecimento da prescrição. Inconformismo do exequente. Reconhecimento da prescrição intercorrente que exige prévia intimação da Fazenda Pública, após constatada a não localização do devedor e a ausência de bens sobre os quais possa recair a penhora, nos termos do artigo 40 da Lei de Execução fiscal.
Inobservância de tal procedimento que acarreta evidente prejuízo ao exequente e, consequentemente, gera a nulidade do decisum, conforme entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso repetitivo.
Cassação do julgado que se impõe. Provimento do presente recurso, para o fim de cassar o julgado atacado e determinar o retorno dos autos à origem.

(TJ-RJ. Apelação Cível nº 0015758-18.2007.8.19.0083. Desembargadora GEÓRGIA DE CARVALHO LIMA. 12ª Câmara Cível. Julgado em 15/10/2019.) (Grifamos)

“APELAÇÃO CÍVEL TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. IPTU. […] PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO QUE SE APLICA A TODAS AS PARTES. MATÉRIA APRECIADA PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA SOB A SISTEMÁTICA DOS RECURSOS REPETITIVOS NO JULGAMENTO DO RESP 1.340.553/RS (TEMAS Nº 566 A 571). […] PRECEDENTES DO TJRJ. MANUTENÇÃO DO ACÓRDÃO HOSTILIZADO. JUÍZO DE RETRATAÇÃO NÃO EXERCIDO
[…] Na espécie, despacho liminar positivo foi proferido em janeiro de 2008. Expedição do mandado de citação que, entretanto, ficou a cargo do exequente, por força de convênio firmado com o TJ-RJ. Ausência de manifestação do credor por quase oito anos, sem apresentar documento comprobatório do cumprimento da diligência citatória, até a prolação da sentença, contra a qual interpôs apelação. Providências necessárias à promoção da citação do réu que cabiam ao Município exequente, no prazo de 10 dias subsequentes ao despacho liminar positivo, sob pena de não se considerar interrompida a prescrição, consoante a regra do artigo 219, § 2º do CPC/1973, vigente à época;
3. Observância obrigatória ao princípio constitucional da razoável duração do processo que se aplica a todas as partes. Conjugação do princípio do impulso oficial com outras garantias constitucionais. Situação dos autos em consonância com a matéria apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça sob a sistemática dos recursos repetitivos no julgamento do REsp 1.340.553/RS (Temas nº 566 a 571);
4. Outrossim, era obrigação da Fazenda Pública, quando da interposição da apelação, demonstrar o prejuízo sofrido, isto é, a causa interruptiva ou suspensiva da prescrição, o que não foi feito. Intimação dentro do procedimento do artigo 40 da LEF que, no caso concreto, seria inócua, já que sua finalidade é dar ciência à Fazenda Pública acerca do resultado da diligência citatória e esta ficou sob sua própria responsabilidade. Precedentes do TJ-RJ no mesmo sentido em casos análogos;
5. Manutenção do acórdão hostilizado. Juízo de retratação não exercido.”

(Apelação Cível nº 0030383-07.2006.8.19.0014. 2ª Ementa. Desembargador LUIZ FERNANDO DE ANDRADE PINTO. 25ª Câmara Cível. Julgado em 9/10/2019) (Grifamos)

Interessante observar que ambos os julgados fazem menção ao Recurso Especial nº 1.340.553/RS, da relatoria do eminente ministro Mauro Campbell Marques, apesar de concluírem de forma diametralmente diferentes, o primeiro pelo provimento da apelação e o segundo pelo desprovimento.

Nesse recurso especial repetitivo, ficaram definidas diversas teses acerca da prescrição intercorrente nas execuções fiscais, das quais já se extraía a necessidade de ser cientificada a Fazenda Pública quando da não localização do devedor ou da inexistência de bens penhoráveis, ou seja, a intimação da Fazenda prévia ao decreto prescricional é imprescindível à observância do contraditório.

Sobre o caso concreto que gerou a instauração do IRDR aqui estudado, a matéria controvertida, ora solucionada, não trata de prescrição anterior ao ajuizamento da execução fiscal, mas sim de prescrição intercorrente, pela demora no andamento processual.

Com efeito, o mérito do IRDR era definir se há necessidade de intimação da Fazenda Pública antes da sentença que reconhece a ocorrência de prescrição intercorrente. Se a falta de intimação da Fazenda Pública antes da prolação de sentença que reconhece a ocorrência de prescrição intercorrente viola algum princípio processual.

Frise-se, novamente, que o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do REsp nº 1.340.553/RS, sob o regime dos recursos repetitivos, pronunciou-se sobre a verificação da prescrição intercorrente em execução fiscal (Temas nº 566 a 571) e assentou entendimento no sentido de que a contagem do prazo da prescrição intercorrente tem início somente após cientificado o Fisco da não localização do devedor e/ou de seus bens, ou seja, indispensável a intimação para respeito ao efetivo contraditório.

No caso em tela, o município de Japeri (RJ) salientou nos autos o cuidado da sua Procuradoria-Geral na interposição de recursos nos processos de execução fiscal, o que, inclusive, vinha trazendo resultados favoráveis junto ao Superior Tribunal de Justiça.

Ficou esmiuçado que muitas das apelações que acabaram por ensejar a instauração do presente IRDR estavam englobadas num cuidadoso trabalho realizado pela Procuradoria-Geral do Município na tentativa de tornar eficiente a busca da satisfação do crédito tributário.

Explica-se.

Houve remessa, pelo Cartório da Central de Dívida Ativa da Comarca de Japeri, de 18 caixas contendo 1.497 processos de execuções fiscais ajuizadas no ano de 2007 com valores que ultrapassavam a alçada prevista no artigo 34 da Lei de Execuções Fiscais, extintas por sete “sentenças paradigmas” proferidas em conjunto. (Pede-se vênia para informar que o valor da alçada como definidor do recurso a ser interposto na execução fiscal será objeto de artigo próprio).

A Procuradoria-Geral do Município realizou um trabalho de triagem das situações encontradas nos processos de execução remetidos, identificando-se as seguintes situações:

1ª situação:
. O mandado de citação não foi expedido/encaminhado.
. Município não foi intimado
. Sentença

2ª situação:
. Endereço da CDA irregular (impossível a citação)
. Intimação/Remessa ao Município para fornecer dados.
. Petição do Município sem dados
. Sentença

3ª situação:
. Citação postal negativa
. Intimação/Remessa ao Município para fornecer dados.
. Petição do Município sem dados ou sem petição do Município
. Sentença
Ou
. Citação postal negativa
. Citação por edital declarada nula
. Houve intimação/Remessa ao Município para fornecer dados.
. Petição do Município sem dados
. Sentença

4ª situação:
. Citação postal negativa
. Não houve intimação do município
. Sentença

5ª situação:
. Citação postal positiva
. Expedido mandado de penhora
. Feito paralisado aguardando retirada do mandado pelos oficiais ad hoc
. Intimação do município sobre a paralisação do feito
. Pedido de penhora online, sem fornecimento de CPF/CNPJ
. Intimação do município para apresentar dados
. Petição do município sem dados, requerendo expedição de ofício à Rec. Federal
. Indeferimento e intimação do Município para apresentar dados
. Petição do Município sem dados
. Sentença

Diante disso, nas situações em que não houve expedição da citação, nem sequer intimação do município a dar andamento e fornecer dados (1ª e 4ª situações), foi determinada a interposição dos recursos de apelação, com base na demora imputável exclusivamente ao Poder Judiciário e ofensa ao contraditório, o que foi realizado e, após muitos recursos providos e muitos desprovidos, o mencionado IRDR foi instaurado e, agora, veio a ser decidido.

Percebe-se, ainda, que as demandas repetitivas também tangenciam a demora imputável exclusivamente ao Judiciário. Como se sabe, a Súmula 106 do STJ é clara: “Proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da justiça, não justifica o acolhimento da arguição de prescrição ou decadência”, sendo certo que tal entendimento foi encampado pelo legislador que o trouxe no §3º do artigo 240 do Novo Código de Processo Civil: “Art. 240. […] § 3o A parte não será prejudicada pela demora imputável exclusivamente ao serviço judiciário”.

Nesse diapasão, ainda que se considerasse que o município deixou de diligenciar no feito, a extinção da execução deve ocorrer apenas após a suspensão prevista no artigo 40, Lei 6.830/80 e, ainda, ser precedida de intimação da Fazenda Pública exequente, como determina o §4º do artigo 40 da Lei nº 6.830/1980, acima já transcrito. Essa era questão meritória colocada no Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas.

Destaque-se que o Código de Processo Civil-2015, atento ao dever de cooperação e lealdade, expressamente previu no já citado parágrafo único, do artigo 487, a necessidade de oportunizar à parte que se manifeste antes do reconhecimento da prescrição. Esse é o espírito que permeia o novo diploma processual, como se denota da redação do igualmente já mencionado artigo 10.

O município, nos memoriais apresentados, concluiu que a sentença que reconhece a ocorrência de prescrição intercorrente em execução fiscal, sem prévia intimação da Fazenda Pública, é nula por ofensa aos princípios do contraditório e da não-surpresa. Além disso, destacou que tal ofensa, obviamente, não podia ser admitida pelo TJ-RJ.

Agora, o tribunal parece ter pacificado o tema com a definição da tese claríssima: “A decretação de ofício da prescrição intercorrente em sede de execução fiscal torna indispensável a prévia intimação da Fazenda Pública para se manifestar sobre o eventual decreto prescricional, em homenagem ao princípio da não-surpresa e aos deveres de lealdade e cooperação, nos moldes dos artigos 10 e parágrafo único, 487 do Código de Processo Civil, sob pena de nulidade, por violação ao princípio do contraditório em sua modalidade substancial”.

Os autos foram conclusos para lavratura do acórdão.

[1] Especialistas discutem fortalecimento do IRDR no sistema de precedentes do CPC/2015. Notícias STJ, 2022. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/20082021-Especialistas-discutem-fortalecimento-do-IRDR-no-sistema-de-precedentes-do-CPC2015.aspx. Acesso em: 7/10/2022.


 é advogado, procurador municipal, professor da Emerj (Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro), mestrando em Direito pela Unesa (Universidade Estácio de Sá), especialista em Direito Público e Privado pela Emerj, especialista em Direito Administrativo pela Ucam (Universidade Cândido Mendes), membro do Cejur (Centro de Estudos Jurídicos da PGM Japeri-RJ) e presidente da Comissão Especial de Direito do Estado e Advocacia Pública da 1ª Subseção da OAB-RJ.

 é advogado, procurador municipal, mestrando em Direito pela Unesa (Universidade Estácio de Sá), especialista em Direito Público pela UCP (Universidade Católica de Petrópolis), presidente do Cejur (Centro de Estudos Jurídicos da PGM Japeri-RJ) e membro da Comissão Especial de Direito do Estado e Advocacia Pública da 1ª Subseção da OAB-RJ.


Fonte:

https://www.conjur.com.br/2022-out-16/oliveirae-algebaile-prescricao-decretada-oficio-contraditorio?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook

https://www.migalhas.com.br/depeso/317629/prescricao-decretada-de-oficio-e-contraditorio–a-historia-de-um-irdr

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